segunda-feira, novembro 06, 2006

4 - Vida malvada, vida florida

A primeira crónica escrita já na minha nova vida, em plena Ilha das Flores. Uma terra linda mas cheia de particularidades, que se reflectem bem no que dela dizem os habitantes que de lá "escaparam". É também nesta crónica que faço uma promessa que nunca consegui cumprir...

A vida tem coisas complicadas só por si, mas nós arranjamos sempre forma de a tornar ainda mais difícil. Quem me mandou ser professor? Quem me fez cair na “asneira” de pôr no boletim de candidatura o código da escola das Flores? Ninguém. É certo que fiquei com a estabilidade profissional assegurada, mas, com as hipóteses que me foram oferecidas, fica sempre aquela ingrata sensação de “como seria se tivesse escolhido ao contrário”, e essa já ninguém ma tira… Longe de mim querer vir para aqui armar-me em queixinhas, mas estas inquietações do quotidiano são melhor digeridas depois de passadas para o papel. Nunca fui adepto dos diários e não é agora que vou começar a ser, mas vou fazer um esforço para disciplinar a minha escrita e conseguir escrever um “semanário” nas páginas deste jornal, assim a paciência dos leitores me acompanhe.
Pois bem, estou nas Flores há poucos dias mas já deu para tirar uma conclusão: quem morrer sem cá vir não sabe o que perde. Para os apreciadores de paisagens naturais, as Flores são um paraíso perdido a meio caminho entre a Europa e a América, que vale a pena explorar até ao último palmo. Não é fácil colocar em palavras o impacto visual provocado pela parte central da ilha, mas se disser que a partir de hoje a minha referência paisagística deixa de ser a Lagoa das Sete Cidades e passa a ser a Ilha das Flores acho que já se fica com uma boa ideia do que estou a querer dizer…
Mas, então, se as Flores são um bocado do céu que caiu na terra, por que é que ninguém quer cá ficar, nem sequer aqueles que aqui nasceram? Pois bem, em certos aspectos já deu para perceber por quê: Posto em Português corrente, há aqui um grande atraso de vida. Começo a perceber os avisos que me fizeram para quando chegar o Inverno não deixar acabar a comida na despensa, o gás na garrafa ou a gasolina no depósito. Então não é que o Verão ainda não acabou e já há sítios sem Coca-cola, Sprite e coisas do género? Não é admissível, até porque ainda há bastantes turistas na ilha, que deixam ficar dinheiro sempre bem vindo. Por outro lado, numa terra pequena há sempre menos com que ocupar o tempo, daí que todas as ideias sejam poucas para fugir à monotonia do correr dos dias. Por enquanto não me queixo, mas ainda me ecoam na cabeça as palavras de uma antiga aluna da universidade, que quando soube do meu destino me disse logo que não queria voltar para casa, “porque aquilo é uma seca”…
Agradeço-te a “solidariedade”, mas, Conceição, digo-te já que a tua terra é mesmo muito bonita e merece ser estimada pelos seus e conhecida pelos outros, com ou sem Coca-cola…
A força do calor humano tem aqui uma importância acrescida, diria mesmo esmagadora. Não só no que toca aos muitos professores de fora que aqui chegam e se tentam adaptar ao meio e aos novos colegas, mas também na forma como são recebidos pelos restantes colegas e funcionários. Não deixou de ser surpreendente ver o simpático porteiro da escola encher o carro de professoras (com o consentimento da esposa, é claro) e levá-las para a festa da Fajã Grande, onde nos juntámos de forma naturalmente instintiva e pudemos apreciar a genuinidade destas gentes.
É espantoso como um arraial tão pequeno consegue ter uma animação tão grande, com o bailarico no adro da igreja a ser o prato forte da noite. Animados por um artista local, muitos foram os pares que durante horas dançaram o melhor que sabiam e sem quaisquer preconceitos, desde os mais novos aos mais velhos. Da Garagem da Vizinha ao tango a distância ficou mais pequena, e da Bomba à valsa as diferenças quase se esbateram na noite florentina, com as mornas de Cabo Verde e o Pidjiguiti pelo meio.
Assim se vê que é perfeitamente possível viver feliz nas Flores, pelo menos enquanto não chega o Inverno…

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